Orações que manifestam a relação de comparação: o(s) uso(s) de feito, tipo e igual

 A maioria das gramáticas tradicionais de Língua Portuguesa analisa as orações comparativas como um subtipo das subordinadas adverbiais, e pouco espaço tem sido reservado ao seu estudo.
Observem-se as orações destacadas abaixo:

(1) (...) hoje eu trabalho muito mais [do que trabalhava] e não tenho praticamente nada... (...) (AC 18 - PB)

(2) (...) o curso profissional foi muito melhor, muito melhor mesmo, inclusive minha minhas notas foram muito mais altas no curso profissional [do que no básico.] (AC 1 - PB)

No âmbito da gramática tradicional, as orações entre colchetes são classificadas como subordinadas adverbiais comparativas, visto que são introduzidas pela conjunção subordinativa comparativa do que. No entanto, há um aspecto que as distingue - em (1), não se omite o predicado da oração subordinada adverbial comparativa; em (2), omite-se tal predicado por ele ser o mesmo da oração principal - ser. Assim, subentende-se que o período em questão seja: (...) minhas notas foram muito mais altas no curso profissional [do que (foram altas) no básico].
Normalmente, os critérios adotados para se definir a comparação são semânticos e/ou formais. Pelo critério semântico, denominam-se comparativas as estruturas que expressam o resultado de uma comparação entre dois conceitos, que, do ponto de vista do modo, qualidade ou quantidade dos mesmos, aparecem como semelhantes, iguais ou desiguais. Já pelo critério formal, consideram-se comparativas as estruturas em que há, no primeiro segmento da comparação, intensivos do tipo mais, menos ou tanto, e em que o segundo seja introduzido por que, de ou como.
Neves (2000), dentro da visão de uma gramática de usos, caracteriza as construções comparativas, do ponto de vista sintático, pela interdependência de dois elementos e, do ponto de vista semântico, pelo cotejo desses elementos. Sendo assim, tais construções são formadas, segundo ela, de uma oração nuclear ou principal e uma oração comparativa, que constitui o segundo termo da comparação em relação à principal, compondo-se do somatório de duas partes: o primeiro termo da comparação e o segundo termo da comparação.
Diante de tais descrições, como analisar os usos a seguir exemplificados?

(3) quando a gente viaja... se é de carro eu vou do lado do meu marido feito co-piloto... então aquilo eu freio junto com ele... eu faço as mudanças junto com ele... então eu fico muito estressa/estressada porque eu fico muito preocupada com a estrada...

(4) #D - como é que se cha/ chama aquilo que que fica grudado na pedra?
#I - ela se ela ela ela se se alimenta duma duma semente que tem no mar é tipo um:é tipo uma planta

(5)#D- o que que é canavieira?
#I1 - essa canavieira é igual eu falei essa canavieira foi um rapaz aqui de Italva há muitos anos eu era pequeno quando ele trouxe pra pra esse rio e botou aqui pra cima aqui entendeu?"

Em (3), feito assume a função de conjunção, ligando duas orações. É um verbo (palavra lexical plena) que também desenvolveu a função de conjunção (palavra gramatical). Em (4), é tipo que assume a função de conjunção. É um substantivo (palavra plena) que desenvolveu a função de conjunção (palavra gramatical). Já em (5), igual é um adjetivo (palavra plena) que assume a função de conjunção (palavra gramatical). Esse tipo de mudança implica alterações morfológicas (mudança de classe gramatical), semânticas (mudança de sentido) e sintáticas (mudança de contexto e funções nas relações entre palavras). Mudanças como essas podem ser explicadas à luz do conceito de gramaticalização, processo que leva itens lexicais e construções sintáticas a assumirem (novas) funções referentes à organização interna do discurso.
Barreto (1999) afirma que a maior parte das conjunções portuguesas vem experimentando, ao longo do tempo, processos de gramaticalização ou discursivização. Em outras palavras, a gramaticalização é um processo que ocorre continuamente na história da maioria dos itens conjuncionais da Língua Portuguesa. Por pressão pragmático-discursiva, ou, de acordo com as necessidades do falante em situações reais de comunicação, conjunções: deixam de ser empregadas; são substituídas por outras; assumem novos valores semânticos.
Sendo assim, neste estudo, objetiva-se fazer uma descrição de construções comparativas como as listadas em (3), (4) e (5), em cotejo com aquelas descritas pela tradição, principalmente no que tange ao uso(s) da(s) conjunção(ões). Portanto, parte-se da hipótese de que feito, tipo, igual ao assumirem a função de conjunção podem introduzir orações comparativas como as ilustradas em (1) e (2).
O quadro teórico em que se sustenta o trabalho provém de estudos que vão desde a tradição gramatical até estudos funcionalistas, segundo os quais as estruturas comparativas não são construções uniformes e passam por um processo de mudança. Dentre os aspectos observados, destacam-se a posição da conjunção na sentença, o modo verbal da sentença subordinada, a permissão de elipse na primeira ou na segunda sentença ou sintagma.
O Projeto "Orações que manifestam a relação de comparação: o(s) uso(s) de feito, tipo e igual" integra-se ao Projeto USO(S) DE CONJUNÇÕES & COMBINAÇÃO HIPOTÁTICA DE CLÁUSULAS, em que se propõe não só uma revisão do tratamento dado pela Gramática Tradicional à classe das conjunções como também aos períodos compostos tanto por coordenação quanto por subordinação.
A fim de melhor observar o comportamento dessas construções comparativas, recorreu-se a diferentes corpora: ao corpus do Grupo de Estudos Discurso & Gramática - D & G -, ao Corpus Compartilhado do Projeto VARPORT, que já está disponível no site referente à linha de pesquisa Língua e Sociedade: Variação e Mudança, do Departamento de Letras Vernáculas da UFRJ, selecionado de diferentes corpora organizados por pesquisadores que integram a equipe do Projeto no Brasil e em Portugal. O Corpus Compartilhado abarca as modalidades escrita (dos séculos XIX e XX) e falada (standard e substandard) de ambas a variedades do Português. Recorreu-se, ainda, a um corpus que se constitui de jornais e boletins publicados pela Adufrj-SSind desde a sua criação, em 26 de abril de 1979, até o mês de agosto de 2003.
Uma abordagem dessa natureza apresenta uma contribuição pedagógica, principalmente, no ensino de língua materna, visto que evidencia a necessidade de a escola incluir a análise de usos reais da língua e não somente se ater àqueles da prescrição gramatical. Some-se a isso, ainda, o fato de contribuir para uma descrição mais detalhada de diferentes construções em português que podem estabelecer a relação de comparação.
O Projeto contribuirá, também, para aprofundar o conhecimento acerca da relação entre codificação linguística e a função discursiva, permitindo revisitar o modelo da gramaticalização.